No STJ, porte de arma de fogo para garantir o “sucesso” do narcotráfico não é punível
“Se a arma de fogo é usada para garantir o sucesso do tráfico de drogas, sua apreensão nesse contexto não gera crime autônomo. Assim, incidirá apenas a majorante da pena prevista no artigo 40, inciso IV, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).” Com base nessa premissa, a 3ª seção da corte fixou tese vinculante (de aplicação obrigatória por todos os tribunais brasileiros), para conceder a traficantes portadores de armas de fogo o benefício da incidência apenas de um aumento de pena no crime de narcotráfico. Leia até o final, e entenda o que está em jogo. O emprego de arma de fogo durante a traficância gera a possibilidade de aumento da pena de um sexto a dois terços (cf. o artigo 40, inciso IV da Lei de Drogas). Por outro lado, porém, outra lei nacional define o porte ilegal de armamento como um crime em si (autônomo), que se consuma com a mera conduta de “portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização”, sendo punido com reclusão de 2 a 4 anos, além de multa (cf. o artigo 14 do Estatuto do Desarmamento). O porte ilegal de arma foi considerado um delito de tamanho potencial lesivo, que o Estatuto o classificou como crime inafiançável, exceto nos casos em que a arma estiver registrada em nome do agente. Hipótese excepcional que, diga-se de passagem, jamais se verificará no submundo das gangues do narcos. Portanto, à luz de um mínimo de razoabilidade jurídica e de boa fé, o traficante que praticasse o seu “ofício” com armamento teria de ser punido por dois crimes diferentes: o delito de porte de arma (à luz do Estatuto do Desarmamento) + o delito de narcotráfico acrescido de um sexto a dois terços. A pena pelo porte de arma teria de ser somada à pena pela traficância, em fenômeno designado, em juridiquês, como concurso material de crimes (cf. artigo 69 do Código Penal); que nada mais é que a aplicação cumulativa (somatório!) das penas por todos os crimes nos quais o agente tiver incorrido. Contudo, para surpresa de ninguém, o STJ bolou uma autêntica pirueta retórica para deixar traficantes perigosos “a salvo” do rigor da regra do concurso material, comentada acima. Para o ministro Reynaldo Soares, autor da tese acolhida por seus pares, o crime de porte de arma não seria punível em si, pois, nas palavras do togado, constituiria “apenas um meio para viabilizar ou facilitar a prática do tráfico de drogas”. Na visão dos magistrados “superiores”, o porte ilegal de armas, por traficantes, não pode acarretar uma punição autônoma, pois consiste em instrumental imprescindível ao “sucesso” da traficância. Traduzindo ainda mais: se o porte ilegal de armas servir à garantia do êxito do narcotráfico, não acarretará a sanção prevista para ele pelo Estatuto do Desarmamento; ao contrário, se, por entraves burocráticos, um indivíduo estranho à delinquência não tiver conseguido obter, ou renovar a tempo a sua licença de porte de arma, este, sim, será punido com todo o rigor. Confesso que me faltam palavras polidas para descrever um julgamento como esse, concluído por corte integrante da nossa elite judiciária. “Atenciosos” com os anseios do traficante de alcançar êxito em sua empreitada criminosa, se recusam a punir o crime de porte, definido em lei como crime autônomo. E, tudo isso, para reduzirem, ao mínimo, o período de reclusão a ser imposto aos “soldados” das associações criminosas que aterrorizam nossas cidades, não apenas com a traficância, mas também com sua vasta rede de negócios ilícitos, e, sobretudo, com a intimidação covarde exercida pelas gangues sobre as camadas mais vulneráveis da sociedade. O que falta para oficializarmos a nossa condição de narcoestado? REsp 1.994.424 REsp 2.000.953
Golpe ou trama de folhetim?
Veja o artigo produzido pela Kátia Magalhães no Instituto Liberal. Clique no link abaixo para acessá-lo: Golpe ou trama de folhetim?