Em declaração prestada, ontem (9), à mídia, o ministro Barroso, presidente do STF e do CNJ, afirmou que o Inquérito das Fake News deverá ser encerrado em 2025, quando o PGR Paulo Gonet já estiver de posse de todos os elementos da “investigação” conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes. “De fato, está com o PGR. Mas, mesmo que ele faça alguns arquivamentos ou denúncias no início, ainda terá água para passar embaixo dessa ponte. Vamos ter ainda um ano lidando não com o inquérito, mas com as ações deles.”
Embora tenha admitido a demora e a atipicidade do procedimento, Barroso louvou o tal inquérito como instrumento “que salvou a democracia”. “Foi atípico, mas, olhando em perspectiva, acho que foi necessário”, disse o nosso primeiro juiz. “O inquérito está demorando porque os fatos se multiplicaram ao longo do tempo. Com todas as suas singularidades, ele foi decisivo para salvar a democracia. E o padrão brasileiro ia ser o padrão daquele parlamentar que depois convocou atos antidemocráticos. O presidente do partido que atirou contra a Polícia Federal. O blogueiro que está fugido para os EUA”, concluiu Barroso.
Como tantas vezes enfatizado aqui, Barroso não poderia ter tecido um comentário sequer sobre o famigerado inquérito e suas consequências (como, por exemplo, a prisão do ex-parlamentar Daniel Silveira e o exílio de Allan dos Santos), pois os casos ainda se acham em tramitação, perante a corte por ele presidida. Muito menos poderia o nosso primeiro togado ter assumido uma fala profética, ao aludir à “água para passar embaixo dessa ponte”. Ora, juiz imparcial é incapaz de antever fatos, tendo de se restringir ao seu dever funcional de examinar os fatos atuais, submetidos à sua jurisdição de acordo com as normas procedimentais em vigor no país. Porém, a imparcialidade, mandamento inerente a qualquer toga minimamente limpa, se tornou autêntica utopia em nosso país do fiasco institucional.
Aspecto característico das inúmeras falas midiáticas de Barroso reside ainda no emprego dos eufemismos; com uma inflexão vocal própria a alguém que se sente o nosso mais douto pensador do Direito, o togado emprega palavras bonitas para fazer referência a fatos horrendos. Assim, o adjetivo “atípico”, empregado por Barroso para classificar o Inquérito das Fake News, pode ser substituído, por qualquer estudante de curso jurídico, por inconstitucional e arbitrário. Outra designação não merece um inquérito aberto de ofício, para atingir pessoas desprovidas de foro privilegiado e cercear sua livre manifestação de ideias. Trata-se de atentados crassos aos princípios constitucionais da inércia do judiciário (poder que só pode agir mediante iniciativa das partes interessadas), do juiz natural (segundo o qual cada indivíduo só pode ser julgado por magistrado previamente definido em lei como sendo competente para o caso), e da garantia às liberdades opinativa e jornalística.
Não existe inquérito “demorado” devido à multiplicação de fatos. Em Estados de Direito, inquéritos têm de ter objeto e prazo definidos, sob pena de serem necessariamente arquivados. Tampouco há, em regimes democráticos, inquéritos repletos de “todas as suas singularidades”, pois quaisquer investigações têm de seguir rigorosamente os ditames previstos em lei, não podendo se afastar um milímetro dos ritos legais. Via de consequência, inquérito contendo “singularidades” – como reconhecido pelo próprio Barroso! – não passa de procedimento irregular, sendo passível de ensejar a responsabilidade funcional, civil e criminal de seus protagonistas.
Por fim, não há que se falar em inquérito “singular”, mas necessário para “salvar a democracia”. Afinal, se ele é antidemocrático desde o berço – pois atentatório às garantias constitucionais e aos ritos legais -, não pode se destinar a fins democráticos; eis uma contradição grosseira, mas que, ainda assim, é repetida à exaustão por uma mídia desonesta e/ou anencéfala.
Conforme preconizado por nosso primeiro togado, seguiremos no ritmo do arbítrio. Sem qualquer resistência por parte do senado, do CNJ, da OAB, da ABI e da imprensa consorciada ao poder.
Fonte: Revista Oeste
Uma resposta
Excelente texto Dra. Katia!
Querer que esse STF que aí está se porte de forma a respeitar o Estado Democrático de Direito e siga a CF é uma ilusão.